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domingo, 7 de fevereiro de 2021

ESCRAVIDÃO, RACISMO E CIDADANIA NO BRASIL (Parte III)

UM PASSEIO PELOS CICLOS DE NOSSA HISTÓRIA E O EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO BRASIL 

Governo Getúlio Vargas - Período 1930 a 1945

Em postagens anteriores, nos dias 22 e 25 de janeiro, fiz uma introdução ao tema e tratei dos períodos Brasil Colônia, Monarquia e República Velha, afirmando que em todo esse período, decorridos 430 anos de nossa história, não tivemos as condições e a efetiva prática do exercício da cidadania. Uma das causas principais, entendo, foi exatamente iniciarmos a construção do país como uma colônia explorada por aventureiros e, na maior parte desse tempo, com a exploração do trabalho escravo.

Esta situação tem reflexos nas origens da nação brasileira, nas relações pautadas no autoritarismo e desigualdade, com a parte mais pesada dessa “conta”, as sequelas da escravidão, incluindo o mal disfarçado racismo estrutural, ainda hoje oprimindo, das mais diversas e veladas formas, os descendentes do povo escravizado, especialmente pela histórica falta de igualdade de oportunidades.

Nestas condições, chegamos ao final da República Velha e à Revolução de 1930, que levou o gaúcho Getúlio Vargas ao poder. Falar sobre o Presidente Getúlio Vargas e seu período de governo é sempre algo complexo, como complexos eram aqueles tempos e, particularmente, o “homem Getúlio”. Daí a dificuldade para abordar o tema em tão exíguo espaço.

Em 1930, o mundo ainda sofria os reflexos da 1.ª Guerra Mundial e, mais próximo, da grave crise econômica de 1929. No Brasil, as mazelas políticas da Velha República, levaram à revolução de 30. Eram tempos de governos autoritários em diversas partes do mundo e, já, do cenário que levaria à 2.ª Guerra Mundial, cujo final e consequências encerrou o ciclo do primeiro governo de Getúlio Vargas.

Pelas circunstâncias daquele período, no mundo e no país, juntamente com a índole e crenças de Getúlio, seu período de governo foi também um período de exceção e de autoritarismo. Mesmo assim, foi um divisor de tempos entre um “Brasil arcaico” e os primeiros passos na construção de um “Brasil moderno”. A quem interessar o aprofundamento do tema, sugiro a leitura de RAÍZES DO BRASIL, de Sérgio Buarque de Holanda.

Pode se destacar, dentre outros, como aspectos positivos do período, a organização da estrutura administrativa do país, a legislação trabalhista e, em termos de cidadania, a reforma da legislação eleitoral e o voto feminino. No geral, contudo, é inegável que foram tempos de um regime de força, antidemocrático, com perseguições aos adversários políticos e violação dos direitos e garantias fundamentais.

O que afirmo, nas linhas acima, não é uma crítica pessoal a Getúlio Vargas, mas uma constatação histórica. Nesse contexto, apesar dos reconhecidos avanços, é certo que o exercício da cidadania, em sua plenitude, restou prejudicado. Não há como uma nação evoluir no exercício de cidadania sob um regime de força e opressão permanentes.

Como anteriormente dito, o período iniciado em 1930 foi um “divisor de águas” entre o Brasil arcaico e o moderno. Calha registrar, contudo, que o país continuava ainda com as características de um país rural, patriarcal. Nos grotões e nas pequenas cidades os costumes e a cultura reagiam, como ainda reagem, a quaisquer mudanças. E nesse cenário, prevalecia a falta de oportunidades, o tratamento desigual e a forte discriminação aos descendentes dos negros escravizados.

Esses foram os tempos em que nasceram os nossos pais e muitos das velhas gerações que ainda estão aí, herdando e legando às gerações que sobrevieram os costumes e a cultura de um país arcaico, de tradição autoritária, machista, racista, permeado por desigualdades de toda ordem e, por isto mesmo, envolto em circunstâncias adversas ao pleno exercício da cidadania.

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Na próxima postagem: Os Anos Dourados (1945 a 1964)

 

 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

ESCRAVIDÃO, RACISMO E CIDADANIA NO BRASIL - Parte II

 

UM PASSEIO PELOS CICLOS DE NOSSA HISTÓRIA E O EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO BRASIL 

Parte II - Brasil Colônia, Monarquia e República Velha

Na introdução a esta série de postagens, iniciei focando o episódio envolvendo o protesto dos novos vereadores de Porto Alegre sobre os versos do Hino Riograndense e as reações daí decorrentes. Os fatos recentes remetem à questão do racismo em nossa sociedade. Uma análise mais abrangente exige uma retrospectiva nos diversos ciclos da história do país e o exercício da cidadania, matéria desta postagem.

O primeiro ciclo se passa no Brasil Colônia, maior parte de nossa história, decorridos 308 anos, entre a chegada de Cabral, em 1.500, e a transferência da Família Real para o Brasil em 1808. Nesse período, não tivemos qualquer desenvolvimento como nação. O território da colônia era uma mera fonte de exploração por aventureiros. O modelo de exploração e colonização reproduzia em muito o sistema da idade média na Europa. As Capitanias Hereditárias reproduziam o modelo dos feudos medievais.

O imenso território, ainda não delimitado em suas confrontações, era uma simples colônia, com sua exploração e produção de riquezas alavancada no trabalho escravo. Aqui tem início o vergonhoso capítulo do tráfico de escravos africanos. Não há como se falar em exercício de cidadania diante de tamanha violação dos mais elementares princípios humanísticos.

Veio a família real portuguesa, a independência e a instauração da monarquia, num lapso de tempo que dura pouco mais de 80 anos, de 1808 a 1889. Em síntese, além de outros diversos aspectos desta primeira fase do Brasil independente, releva destacar que perdurou o regime escravagista, sendo este fato suficiente para se afirmar que também neste ciclo não houve avanços significativos no exercício da cidadania. Uma nação dividida entre homens livres e escravos não permite que se desenvolva o efetivo exercício da cidadania.

Com a Proclamação da República, passamos ao ciclo conhecido como “Velha República”, vigente de 1889 até 1930. As mudanças, de monarquia para república, a abolição da escravidão em 1888, não tiveram expressivo significado em termos de exercício da cidadania. Os velhos “barões” mantiveram seu poder, passando a ser os novos “coronéis”. Num país com expressiva maioria de analfabetos, o voto era exclusivo dos homens alfabetizados e as eleições eram escancaradamente fraudadas.

Enquanto, desde antes do final da monarquia, chegavam levas de imigrantes europeus, que ganharam terras ou empregos assalariados, para substituir o braço escravo, os negros libertos foram jogados à própria sorte, sem terras, sem empregos, sem qualquer programa de apoio que lhes assegurasse trabalho e renda para o sustento de suas famílias.

Muitos dos libertos permaneceram numa espécie de servidão junto aos antigos senhores. Outros foram empurrados para viver em condições paupérrimas nas periferias das cidades. Em resumo, embora legalmente livres, continuaram de fato submetidos à desigualdade, relegados ao abandono e à discriminação. Nestas circunstâncias, continuaram sendo violados direitos básicos como liberdade e igualdade, porque a liberdade formal ainda não fora traduzida em liberdade de fato.

Ingressamos no Século XX com uma nação que negava os mais elementares direitos de cidadania à parcela expressiva de seus cidadãos, exatamente aqueles que, ao longo de quase quatro séculos, contribuíram com seu suor, sangue e vidas para a construção do país. 

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Próxima postagem:  Governo Getúlio Vargas, Os Anos Dourados

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

ESCRAVIDÃO, RACISMO E CIDADANIA NO BRASIL

UM PASSEIO PELOS CICLOS DE NOSSA HISTÓRIA  E O EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO BRASIL  

I - Introdução

Com o recente episódio envolvendo o protesto realizado na posse dos novos vereadores de Porto Alegre e a discussão sobre versos do Hino Riograndense, reabriu-se a polêmica de discussões sobre a discriminação racial no Brasil. Como acontece nos últimos tempos, além de matérias na imprensa, o assunto ganhou enorme repercussão nas redes sociais.

Dentre as inúmeras manifestações, especialmente em redes sociais, predominaram ataques agressivos ao gesto dos vereadores. Sob pretexto da defesa dos versos do hino e das tradições gaúchas, as manifestações agressivas não disfarçam a discriminação racial, em muitos casos agregada ao ranço da polarização ideológica devido ao segmento político representado pelos vereadores autores do protesto.

Esse ranço da polarização ideológica, sobre toda e qualquer questão que venha à discussão pública, é alimentado pelo fanatismo que, como sabemos, impede análises e posicionamentos embasados em contextos abrangentes, considerando os diversos ângulos de um mesmo fato, suas causas e consequências. É o fanatismo que cega, que foge da racionalidade e dá vazão ao instinto irracional e primitivo.

Voltando ao aspecto da polarização, talvez nem se deva chamar de “ideológica”, uma vez que a maioria dos contendores, encastelados em suas bolhas, de onde rechaçam quem deles divergir, sequer tem uma noção exata do que seja “ideologia”. Expressivo número desses que interagem pela reprodução de “memes” criados por terceiros, ou por um curto vocabulário com matriz agressiva ou provocativa, não tem qualquer convicção política ou ideológica e apenas seguem líderes personalistas, com o fanatismo de um torcedor de futebol.

Para boa parte desses “polemistas de rede social”, seu interesse pela vida política do país data de menos de meia dúzia de anos, assim como seu conhecimento sobre a história e a formação de nosso povo não vai muito além. Existem exceções, muitas, é claro. Contudo, pelo conteúdo das manifestações sobre o episódio ao início referido, o protesto envolvendo versos do Hino Riograndense, colhi a ideia de que são majoritários os fanáticos e os racistas, talvez menos por intensão deliberada e mais por uma visão estreita de nossa própria história.  

Diante das considerações retro, proponho-me a trazer uma contribuição ao debate, não com a intenção de polemizar, mas de propor uma análise da situação com uma visão mais abrangente, com um olhar sobre nossa história, com foco no triste capítulo da escravidão dos negros, das sequelas na vida dos descendentes de escravos, dos aspectos transversais que perpassam a formação do povo e o exercício da cidadania no Brasil.

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Nas próximas postagens:

- Brasil Colônia, Monarquia e República Velha

- Governo Getúlio Vargas, Redemocratização e os Anos Dourados

- Governos Militares, Redemocratização e a Constituição Cidadã

- O Despertar da Cidadania, Reivindicações e Resistências

- A Questão do Racismo e o Orgulho da Consciência Negra

LIBERDADE, IGUALDADE E HUMANIDADE (ou discriminação e agressividade)

 

Sou gaúcho, porque nasci no Rio Grande do Sul. Campeiro, passei minha infância numa casa de fazenda, sede da propriedade rural de meu avô, onde meu pai era o capataz, e onde desde cedo aprendi a compartilhar a mesa das refeições com a gente simples do campo, brancos e pretos, letrados e analfabetos. Ali, com o exemplo de meus pais, ao redor do fogo dos galpões, aprendi e consolidei a prática de valores e princípios como respeito, igualdade, lealdade e solidariedade.

Sou gaúcho porque desde guri aprendi e pratiquei as lidas do campo, como repontar uma tropa, consertar uma cerca de arame, manejar um arado e uma enxada, e claro, frequentar carreiras de cancha reta, rodeios e bailantas de rincão. Integrei patronagens de CTG, “arranho” uma sanfona, declamo, trovo, sou poeta e compositor amador, tendo já premiado duas composições com o prêmio “A Mais Popular” em festivais nativistas na minha aldeia natal, Santana da Boa Vista.

Sou gaúcho e cultuo nossas tradições, mas não vejo a história, tradições e costumes pela estreita fresta do fanatismo, nem ostento a prepotência do ufanismo. Meu gauchismo está em minha essência, em minhas raízes, e nos valores insculpidos no dístico de nossa bandeira: “Liberdade, Igualdade e Humanidade”.

Em minha formação, pessoal e profissional, além do conhecimento técnico, vivências e andanças, sou um estudioso das ciências sociais, notadamente da história de nosso país, da formação de nosso povo, de questões envolvendo o exercício da cidadania e, notadamente, do capítulo envolvendo a escravidão, suas consequências e a discriminação racial ainda vigente em nossa sociedade.

Necessário o extenso preâmbulo para ingressar no tema desta postagem, a polêmica surgida no ato de posse dos vereadores de Porto Alegre, quando os edis negros se recusaram a levantar e cantar o Hino do Rio Grande, em protesto contra versos integrante do hino que dizem “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.

Na sequência, na mesma sessão, sobreveio manifestação de uma vereadora criticando o ato de protesto e, a partir daí, notícias na imprensa e a repercussão do fato nas redes sociais, pontuadas por fortes e agressivas críticas aos vereadores que se recusaram a cantar o hino. Lendo parte dessas manifestações, nos diversos veículos, entendi que não deveria ficar omisso, pois “gaúcho de quatro costados”, conhecedor de nossas tradições e estudioso da história, julgo oportuno trazer minha opinião, mesmo que represente “nadar contra a correnteza” (o que exige ser forte).

Pela exiguidade do espaço, não vou adentrar nas origens dos versos do hino, sua intenção e significado, assim como também não cabe, dado ao espaço, ampliar comentários sobre o que foi a escravidão e suas consequências ainda presentes, embora sejam temas que domino e coloco-me a discussão para eventos presenciais, debates ou palestras.

Partindo do ato de protesto, onde os vereadores negros se recusaram a ficar em pé e a cantar o hino riograndense, a título de raciocínio, mesmo em se admitindo que o protesto fosse inadequado naquele momento (esta não é minha opinião), parece-me que as reações foram extremamente desproporcionais e agressivas.

Ao que se teve notícia, os envolvidos no protesto permaneceram em silêncio, sentados. Na sequência uma vereadora que usa o nome político de “Comandante” resolveu, para usar a linguagem gaudéria, dar uma “mijada” nos autores do protesto.

Esquece a vereadora “Comandante” que está num parlamento, que representa a pluralidade da sociedade, e não no comando da tropa de seus soldados, onde são outros os fins e as regras. Calha acrescer que, pelo Regimento Interno da Câmara Municipal, não há qualquer disposição que obrigue os vereadores a entoar qualquer hino. O respeito sim, e o silêncio não é desrespeito.

Esquecem, ou desconhecem, os ferozes críticos e agressores de redes sociais que os negros, desde 1888, não estão mais obrigados a incondicionalmente obedecer a qualquer ordem ou vontade do senhor branco, embora as chagas da escravidão ainda estejam abertas, sangrando em cada ato de discriminação ostensiva ou nos nefastos reflexos na exclusão social a que foram jogados os negros, depois de contribuírem com seu suor, sangue e vidas para a construção de nosso país, onde ainda hoje buscam o direito de igualdade e oportunidade.

Dentro do contexto em que ocorreram os fatos, e da desproporcional reação, eu vejo nessa agressividade escancarados atos de racismo, como discriminação racial é, inclusive, negar a existência do racismo. Alguns dirão que o ato de protesto feriu o decoro parlamentar. O decoro, pois então! Aí eu pergunto onde está o decoro dos engravatados, de qualquer cor ou etnia, que roubam os cofres públicos há décadas, séculos? Onde está o decoro dos boçais que vem a público desferir ofensivas agressões aos autores do silencioso protesto?

Como iniciei dizendo, eu sou gaúcho e tenho orgulho de nossas origens, costumes e tradições, mas não enxergo ou interpreto a história pela fresta estreita do fanatismo e do ufanismo irracionais. Trago a público o posicionamento de quem agrega conhecimento e vivência sobre o tema em foco, além da disposição para o debate, coragem e força necessárias a quem se propõe a nadar contra a correnteza.

Publicado no Face book em 06/01/2021