Sou gaúcho, porque nasci no Rio Grande do Sul. Campeiro, passei minha infância numa casa de fazenda, sede da propriedade rural de meu avô, onde meu pai era o capataz, e onde desde cedo aprendi a compartilhar a mesa das refeições com a gente simples do campo, brancos e pretos, letrados e analfabetos. Ali, com o exemplo de meus pais, ao redor do fogo dos galpões, aprendi e consolidei a prática de valores e princípios como respeito, igualdade, lealdade e solidariedade.
Sou gaúcho porque desde guri aprendi e pratiquei as lidas do campo, como
repontar uma tropa, consertar uma cerca de arame, manejar um arado e uma
enxada, e claro, frequentar carreiras de cancha reta, rodeios e bailantas de
rincão. Integrei patronagens de CTG, “arranho” uma sanfona, declamo, trovo, sou
poeta e compositor amador, tendo já premiado duas composições com o prêmio “A
Mais Popular” em festivais nativistas na minha aldeia natal, Santana da Boa
Vista.
Sou gaúcho e cultuo nossas tradições, mas não vejo a história, tradições e costumes pela estreita fresta do fanatismo, nem ostento a prepotência do ufanismo. Meu gauchismo está em minha essência, em minhas raízes, e nos valores insculpidos no dístico de nossa bandeira: “Liberdade, Igualdade e Humanidade”.
Em minha formação, pessoal e profissional, além do conhecimento técnico,
vivências e andanças, sou um estudioso das ciências sociais, notadamente da
história de nosso país, da formação de nosso povo, de questões envolvendo o
exercício da cidadania e, notadamente, do capítulo envolvendo a escravidão,
suas consequências e a discriminação racial ainda vigente em nossa sociedade.
Necessário o extenso preâmbulo para ingressar no tema desta postagem, a
polêmica surgida no ato de posse dos vereadores de Porto Alegre, quando os edis
negros se recusaram a levantar e cantar o Hino do Rio Grande, em protesto
contra versos integrante do hino que dizem “povo que não tem virtude acaba por
ser escravo”.
Na sequência, na mesma sessão, sobreveio manifestação de uma vereadora
criticando o ato de protesto e, a partir daí, notícias na imprensa e a
repercussão do fato nas redes sociais, pontuadas por fortes e agressivas
críticas aos vereadores que se recusaram a cantar o hino. Lendo parte dessas
manifestações, nos diversos veículos, entendi que não deveria ficar omisso,
pois “gaúcho de quatro costados”, conhecedor de nossas tradições e estudioso da
história, julgo oportuno trazer minha opinião, mesmo que represente “nadar
contra a correnteza” (o que exige ser forte).
Pela exiguidade do espaço, não vou adentrar nas origens dos versos do hino, sua
intenção e significado, assim como também não cabe, dado ao espaço, ampliar
comentários sobre o que foi a escravidão e suas consequências ainda presentes,
embora sejam temas que domino e coloco-me a discussão para eventos presenciais,
debates ou palestras.
Partindo do ato de protesto, onde os vereadores negros se recusaram a ficar em
pé e a cantar o hino riograndense, a título de raciocínio, mesmo em se
admitindo que o protesto fosse inadequado naquele momento (esta não é minha
opinião), parece-me que as reações foram extremamente desproporcionais e
agressivas.
Ao que se teve notícia, os envolvidos no protesto permaneceram em silêncio, sentados. Na sequência uma vereadora que usa o nome político de “Comandante” resolveu, para usar a linguagem gaudéria, dar uma “mijada” nos autores do protesto.
Esquece a vereadora “Comandante” que está num parlamento, que representa a
pluralidade da sociedade, e não no comando da tropa de seus soldados, onde são
outros os fins e as regras. Calha acrescer que, pelo Regimento Interno da
Câmara Municipal, não há qualquer disposição que obrigue os vereadores a entoar
qualquer hino. O respeito sim, e o silêncio não é desrespeito.
Esquecem, ou desconhecem, os ferozes críticos e agressores de redes sociais que
os negros, desde 1888, não estão mais obrigados a incondicionalmente obedecer a
qualquer ordem ou vontade do senhor branco, embora as chagas da escravidão
ainda estejam abertas, sangrando em cada ato de discriminação ostensiva ou nos
nefastos reflexos na exclusão social a que foram jogados os negros, depois de
contribuírem com seu suor, sangue e vidas para a construção de nosso país, onde
ainda hoje buscam o direito de igualdade e oportunidade.
Dentro do contexto em que ocorreram os fatos, e da desproporcional reação, eu
vejo nessa agressividade escancarados atos de racismo, como discriminação
racial é, inclusive, negar a existência do racismo. Alguns dirão que o ato de
protesto feriu o decoro parlamentar. O decoro, pois então! Aí eu pergunto onde
está o decoro dos engravatados, de qualquer cor ou etnia, que roubam os cofres
públicos há décadas, séculos? Onde está o decoro dos boçais que vem a público
desferir ofensivas agressões aos autores do silencioso protesto?
Como iniciei dizendo, eu sou gaúcho e tenho orgulho de nossas origens, costumes
e tradições, mas não enxergo ou interpreto a história pela fresta estreita do
fanatismo e do ufanismo irracionais. Trago a público o posicionamento de quem
agrega conhecimento e vivência sobre o tema em foco, além da disposição para o
debate, coragem e força necessárias a quem se propõe a nadar contra a
correnteza.
Publicado no Face book em 06/01/2021
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